Até 2030, fontes de energia limpa devem substituir as fósseis.
Projeções de mercado já mostram o momento em que fontes renováveis vão se tornar mais baratas que as fósseis e superá-las. Como isso muda os negócios.
Berço da Revolução Industrial, a Inglaterra terá em 2019, pela primeira vez na história, mais energia elétrica de fontes renováveis (solar, eólica e hídrica) do que de derivados de petróleo. Também pela primeira vez, em abril, nos Estados Unidos, a geração por fontes limpas ultrapassou a do carvão. Pouco adiantou o governo Donald Trump ter criado a lei Affordable Clean Energy (ACE), mais complacente com a poluição do que a antiga Clean Power Plan (CPP), de Barack Obama. Uma lei ainda mais poderosa está a favor da energia verde: a lei do mercado. O avanço de geradores solares, geradores eólicos e baterias de grande porte está tornando os combustíveis fósseis comparativamente caros. “Por volta de 2030, essas três tecnologias vão oferecer menor custo de geração do que usinas a gás ou carvão em quase qualquer lugar no mundo”, diz Matthias Kimmel, analista-chefe do relatório 2019 da BloombergNEF (BNEF). A consultoria britânica Wood Mackenzie prevê que em 2035 vai ocorrer o ponto de virada, a partir do qual, pelas condições de mercado, fontes limpas vão se tornar a escolha óbvia de qualquer tipo de projeto — em transporte, construção, indústria, comércio, o que for. O prazo é longo demais diante da ameaça das mudanças climáticas, mas tornou-se próximo o bastante para afetar planos de negócios. No Brasil, a nova matriz energética, mais flexível e ainda mais verde, abre oportunidades e conduz a uma outra mudança. Num país tão extenso e ensolarado, com painéis solares cada vez mais baratos e eficientes, a geração de energia vai acontecer em todo lugar. O fenômeno já era esperado, mas sua iminência o faz ganhar peso na estratégia das companhias do setor. “Empresas e até residências deixam de depender das distribuidoras, passando a produzir sua própria eletricidade”, diz Miguel Setas, CEO da EDP no Brasil, que fatura com distribuição. “Isso muda o papel do consumidor e também o das distribuidoras de energia.”
O crescimento dos prosumers — entes que agem na rede como produtores e consumidores ao mesmo tempo — muda profundamente o papel das distribuidoras de eletricidade. Antes eram donas de feudos, fornecedoras soberanas dentro de sua concessão. Bastava fazer manutenção da rede, ler quadros de luz, emitir boletos. Agora, precisam fazer isso com custos decrescentes — para manter-se competitivas — e lucrar com projetos de autogeração. Para o Shopping Village Mall, no Rio de Janeiro, a EDP projetou e construiu uma usina solar de R$ 30 milhões — o centro de compras entrou com o dinheiro e a distribuidora, com o conhecimento. No contrato para abastecer o Banco do Brasil de 2019 a 2023, entrará com o investimento e venderá a energia. O banco vai economizar R$ 5 milhões. A elétrica ganhará R$ 86 milhões por um serviço que ultrapassa sua área de concessão. “A EDP está virando uma nova companhia, com outra lógica e outra clientela. Agora, buscamos parcerias no país inteiro”, afirma Setas.
A empresa reuniu os funcionários responsáveis por novas ideias, antes divididos em departamentos, no “innovation lounge” — uma espécie de coworking. A primeira ideia dessa equipe foi o EDP Smart, na prática uma loja de soluções. Os programas externos de incentivo à inovação revelaram duas startups que, agora, receberam investimento da EDP Ventures: a cearense Delfos, que usa inteligência artificial e aprendizado de máquina para a manutenção preventiva de turbinas eólicas; e a Dom Rock, que usa inteligência artificial e análise de dados para extrair e organizar informações dispersas, como reclamações de clientes. Ao lançar mão de todo o receituário atual de estímulos à inovação, a EDP planeja aproveitar o choque da livre concorrência para lucrar mais.
Historicamente consumidoras passivas nas redes de energia, empresas de outras áreas — e até edifícios residenciais e casas — vêm rapidamente assumindo outro tipo de papel, de contribuintes com as redes de energia. Num esforço para melhorar sua imagem após os desastres ambientais em Mariana e Brumadinho, a Vale planeja produzir 100% de sua eletricidade com fontes renováveis até 2025. “A energia renovável traz ganho de marketing e deixou de representar um custo adicional”, diz Guilherme Lockmann, líder em energia da Deloitte no Brasil. “Nos Estados Unidos e na Europa, a preocupação do consumidor com as práticas sustentáveis das empresas está se estendendo à origem da eletricidade.”
No mundo todo, prosumers se comprometeram a instalar 32 GW de capacidade (comparável ao parque energético da Holanda), ao longo da última década. No fim deste ano, o total contratado desses atores apenas em 2019 e 2018 vai superar tudo que havia sido combinado nos anos anteriores. “É um impulso que vem de baixo para cima”, diz Marlene Motyka, líder global de energia renovável da consultoria Deloitte. “Empresas de vários setores encontraram condições técnicas para isso.” Numa edificação pequena, do tamanho de uma residência, o investimento na instalação de painéis solares já se paga em três ou quatro anos. As vantagens são muito maiores para edifícios grandes e com alto consumo, como fábricas. “A tendência é, na prática, pagar zero pela eletricidade”, diz Guilherme, da Deloitte no Brasil.
No país, a geração distribuída com fonte renovável será o principal motor do crescimento da capacidade instalada nas próximas décadas. A fabricante de bebidas Ambev assinou em junho um contrato com quatro parceiros para a construção de 31 usinas solares até março de 2020. Os 50 mil painéis solares contratados vão gerar 2,6 mil megawatts/hora (MWh) por mês, o bastante para abastecer seus 94 centros de distribuição no país. A cervejaria pagará pela energia R$ 140 milhões, ao longo de dez anos, e no fim do contrato ficará com as usinas. “Na média, a energia deve ser mais barata [do que a fornecida pelas concessionárias de eletricidade], mas o benefício mais significativo disso tudo é o ambiental”, diz Leonardo Coelho, diretor de sustentabilidade e suprimentos.
A participação dos consumidores na geração torna-se possível com medidores inteligentes, capazes de registrar as retiradas e os acréscimos de energia na rede. Depende também de equipamentos baratos a ponto de caber no plano de investimentos de uma empresa privada. A equação está bem encaminhada: o custo da geração solar cai continuamente, sobretudo graças à eficiência fabril da China. O país responde por 70% da produção mundial de painéis fotovoltaicos, com oito dos dez maiores fabricantes. As células geradoras simples se tornam 28% mais baratas cada vez que o total produzido dobra. Há inovações na fila nos laboratórios, como painéis transparentes que servem como janela ou capazes de acompanhar a fonte de luz ao longo do dia, como girassóis. Ainda há espaço para inovação no chão de fábrica. Após quase sucumbir à competição, a americana First Solar criou uma linha de produção robotizada capaz de montar, em menos de quatro horas e por custo quase um terço menor, painéis que, na China, demoram três dias para ficar prontos.
A competitividade de chineses e americanos nesse segmento é má notícia para as fábricas que se instalaram no Brasil à espera de incentivos do governo que, no fim, não vieram. Mas é alvissareira para consumidores locais — pessoas jurídicas e físicas. Seus geradores solares já respondem por 1 GW da capacidade instalada do país. Graças à novidade, este ano a capacidade de geração solar no país superou a nuclear.
O sol nasce para todos, mas os ventos da mudança sopram com força também a favor da energia eólica. Em 2005, era quase impossível enxergar a participação dessa fonte nos gráficos da matriz elétrica mundial. Hoje ela corresponde a um quarto e, segundo a consultoria McKinsey, crescerá para metade por volta de 2035. No Brasil, a participação (ainda bem menor) também deve dobrar. Não temos tanta urgência em mudar a matriz elétrica, pois mais de 80% da nossa geração já vem de fontes renováveis, enquanto a média mundial fica em torno de 50%, diz Elbia Gannoum, presidente da Associação Brasileira de Energia Eólica. Mas precisamos de alternativas à geração hídrica, porque se torna cada vez mais difícil construir grandes hidrelétricas. Até 2030, a participação dessas usinas na matriz brasileira deve cair de 60% para 44%, diluída pelo avanço das outras fontes.
No caso brasileiro, a mudança ajuda também a distribuir geograficamente as oportunidades de negócio. O Nordeste tem o melhor vento e a melhor insolação do planeta. Graças ao sopro constante em intensidade e direção, as turbinas eólicas erguidas ali registram os mais altos índices de aproveitamento. A italiana Enel anunciou em fevereiro a implantação do maior parque eólico da América do Sul e do maior parque solar do mundo, ambos no Piauí. “O parque solar de São Gonçalo será o primeiro da Enel no país a usar painéis solares bifaciais, capazes de capturar energia de ambos os lados. A expectativa é que isso aumente a geração em até 18%”, diz Nicola Cotugno, CEO da empresa no Brasil.
Conforme os projetos do tipo se tornam mais numerosos e ambiciosos, novas técnicas de produção se difundem e os custos caem — realimentando o ciclo. Para extrair energia em ambientes menos generosos que o Nordeste brasileiro, a GE começa a montar em julho, em Roterdã, na Holanda, o maior cata-vento do mundo, com pás de 107 metros de comprimento — 72% maiores que as recordistas da década passada. Com 220 metros de diâmetro e 260 metros de altura, o colosso vai poder gerar 12 MW — o suficiente para abastecer 16 mil residências. Se essa unidade pioneira funcionar a contento, outras passarão a ser instaladas, também no mar — solução promissora para os países mal servidos de área livre ou vento em terra firme. A Siemens forneceu as 174 turbinas para o maior parque eólico offshore do mundo, em águas inglesas no Mar do Norte, a 120 quilômetros da costa. “Fazer funcionar uma fazenda eólica tão distante é inédito. Tivemos de desenvolver novas formas de trabalho para superar os desafios técnicos e logísticos”, diz David Coussens, executivo de operações no parque gerador.
Principal concorrente da Ambev, a Heineken inaugurou no Ceará um parque eólico para abastecer 30% da demanda de suas fábricas. “Vamos gerar com renováveis o equivalente a 100% do consumo até 2023, muito antes da meta global”, afirma Nelcina Tropardi, vice-presidente de Sustentabilidade da empresa.
Segundo a BNEF, os geradores de energia eólica tornam-se 14% mais baratos cada vez que a produção acumulada dobra. O preço cai graças ao avanço na engenharia de materiais, que permite geradores cada vez maiores e mais eficientes. Dificuldades de logística — o transporte das peças é invariavelmente uma operação de parar o trânsito — impedem a concentração da produção mundial em um único país. Por isso, esse segmento tem uma dinâmica diferente dos painéis solares, dominados pela China.
Graças a essa peculiaridade, o Brasil se tornou um dos polos mundiais de fabricação de geradores eólicos. Teve a seu favor a natureza, de ventos generosos, e o incentivo do Estado. De 2004 a 2018, o BNDES emprestou US$ 30 bilhões para projetos de energia renovável no Brasil. Em troca, exigiu índices crescentes de produção nacional. Como resultado, gigantes do setor, como a dinamarquesa Vestas, a alemã Siemens e a brasileira WEG, abriram fábricas locais. “Foi, com folga, o maior financiador do mundo nesse período. Segundo colocado, o banco Santander liberou US$ 27 bilhões para diversos países”, diz Luiza Demôro, analista sênior do BNEF para a América Latina e diretora do projeto Global Climatescope. “Como resultado dessa política, a geração solar ou eólica brasileira já é mais barata do que a fóssil nos leilões de energia. Isso ainda não acontece em outros mercados emergentes, como Índia e Tailândia.”
A queda de preço dos geradores solares e eólicos pouco adiantaria sem um terceiro elemento, capaz de compensar a inconstância do sol e dos ventos: a bateria. “Das três tecnologias emergentes em energia, o acumulador é a que tem maior potencial para evolução”, diz Marlene, da Deloitte. O custo das grandes baterias cai 14% conforme a produção dobra — e esse ritmo está acelerado, graças à demanda dos automóveis elétricos. O carro dá escala à produção de pilhas e, ao mesmo tempo, incentiva a geração solar residencial. Por isso a montadora americana Tesla Motors se tornou uma gigante mundial de baterias. De 2017 para 2018 a frota mundial de elétricos quase dobrou, para 5 milhões. Segundo a Agência Internacional de Energia, a frota deve superar 130 milhões de unidades por volta de 2025 — quando, nos principais mercados, esses carros se tornarem mais baratos que os modelos a combustão. O petróleo perderá seu mercado mais cativo pela primeira vez, prevê a consultoria McKinsey — e a emissão de carbono no planeta vai, afinal, cair.
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Imagem: AMIGO DA NATUREZA USINA SOLAR EM FORMA DE PANDA NA CHINA: EMPRESAS LOCAIS DETÊM 70% DA PRODUÇÃO GLOBAL DE PAINÉIS FOTOVOLTAICOS (FOTO: VCG/VCG VIA GETTY IMAGES)